I. O novo hábito era mais apertado e desconfortável que o anterior e bem mais escuro. O preto envolvia as cabeças baixas, todas as manhãs: após as rezas individuais matinais (onde os pecados noturnos eram confessados e os laços com o marido celeste, Jesus Cristo, eram renovados) seguiam os hábitos mudos para o grande salão, onde as bençãos matinais eram rezadas com subserviência. Os murmurinhos em latim misturavam-se ao roncos indolentes dos estômagos penitentes de todas.

- In nomine patris, et Filii, et Spiritus Sancti. Amén.
  Introibo ad altare Dei
- Não subirá- pensou Octávia- Não subirá nem um palmo acima deste telhado.
- Ad Deum qui lætificat juventutem meam.

Os roncos, misturados ao latim, tornavam aquela celebração tridentina muito mais longa que o normal. O bispo da região estava visitando o convento e para a grande felicidade (!) das freiras, estava assumindo a celebração matinal. Octávia percebia, como boa macaca velha, que as coisas não estavam na sua ordem natural: dos 25 anos de convento Carmelita, não se lembrava mais quando fora a última missa rezada em latim, com o padre de costas para o público, praticamente medieval. Lembrava-se menos ainda de uma autoridade como um bispo no seu convento, pequeno se comparado à outros do estado com 3, 4 vezes mais mulheres. A madre-superiora, antes acessível e bondosa, não era mais vista, à exceção das missas. As novatas não percebiam, mas entre as mais velhas, era possível ver o tremor do nervo óptico, correndo os olhos como escanners no ambiente na investigação dos detalhes, dos fiapos desalinhados. As curvaturas das bocas cada vez mais crispadas, como se experimentando um sabor muito mais amargo que o esperado. Ah, a discrição!!! Quão boas eram as Carmelitas em ocultar escândalos, quão perspicazes essas mulheres sabiam ser enquanto cortavam lenha, aravam o campo, tratavam dos porcos e das ovelhas, moviam os rústicos teares. Silenciosamente. Sem sons. Contemplação diria algum observador externo: que imersão! que sagrado!
Enquanto separava fibras para confeccionar sandálias, seu último passatempo, observava a madre superiora e o bispo, olhando o pátio interno e conversando em uma janela do segundo andar, próximos à entrada da biblioteca. Octávia viu a expressão desesperada da madre superiora, em tons de súplica, mas era impossível entender do que falavam. A madre Felipa, A Contida, gesticulava ardorosamente ao bispo, que não desviava o olhar das freiras no patíbulo, absortas em seus afazeres diários. Ocorreu-lhe a maluca ideia de que estava sendo observada e avaliada, assim como todas. Olhou na volta e viu as duas irmãs que chegaram por último (daqueles casos irrecuperáveis), olhando impassíveis o bispo, quando uma delas convence a outra a baixar os olhos à separação da lenha cortada, graças a uma discreta e leve cotovelada nas costelas. O bispo, parecia olhar diretamente para elas, que logo em seguida se separam.
- Se Deus mora nos detalhes, tomara que ele designe pelo menos um arcanjo para conferir os bilhetes de entrada no reino dos céus... Introibo ad altare Dei...muito fácil para os homens, quase impossível para nós mullheres, tão mais próximas dos anjos caídos do que dos arcanjos que gradam o paraíso. - A amargura do pensamento foi interrompida pelo olhar cortante da novata Luana, direto nos olhos de Octávia.- Dois arcanjos, seriam necessários dois arcanjos, um não seria suficiente.

       - Bom dia irmã Octávia!
       - Bom dia Amanda! Muita lenha hoje pela manhã?
       - Sim, mais que ontem. Temos que nos prevenir antes do período de chuvas, caso contrário não teremos lenha seca.
       - É verdade. A Luana está te ajudando, pelo que percebi.
Olhos cerrados. Tu não tens a discrição de uma carmelita Amanda.
     - Sabes o que trás o bispo ao nosso convento irmã Octávia? Ele parece uma figura importante, não acha estranho sua visita em um convento tão pequeno?
     - Não sei o porquê de sua visita, mas se foi designado para vir até nós, devemos aceitar de bom grado suas palavras e sermos obedientes à sua autoridade, e o mais importante: preservar a tradição carmelita do silêncio e da comiseração.
     - As carmelitas foram muito importantes no auxílio aos pobres e desamparados, principalmente em tempos difíceis de fome e de guerra...
     - Sim, mas agora vivemos em paz, logo, podemos nos dedicar ao estudo da palavra que leva ao reino dos céus.
      - Claro que sim abadessa Octávia, claro que sim. Que tenhamos um bom dia, pela Sua graça!
      - Amém!

Fazia alguns bons anos que ninguém lhe chamava pelo velho título, abadessa, mas era o que era, mesmo quando não o queria ser, mesmo quando só queria cortar sua lenha, secar suas fibras e produzir as sandálias para as irmãs do convento ou para os pacientes do hospital da cidade.



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