Existe coisa mais patética que escrever sobre o ato de escrever? Me peguei pensando nisso por esses dias em que tantas frases 'profundas' rodeavam meu cérebro e não anotei nenhuma delas, não as continuei. Não seria preciso um estudo profundo de gramática, sintaxe, semântica ou qualquer outro nome bonito para a 'ciência' de encaixotar as palavras? Quem tem a prerrogativa de dizer onde se coloca a partícula apassivadora, que todas as proparoxítonas são acentuadas?
Todos os versinhos bonitos e ridículos deixei escapar. Pensava: faz tempo que não escrevo nada. E quando quero escrever minhas pequenas imbecilidades eu anoto, com lápis, geralmente em papeis avulsos. É estranho. Carrego muitos papéis, tenho algum tipo de fetiche em impressões. Tenho medo do computador e de suas artimanhas, pois sei que os computadores são janelas por onde adentram estranhos distantes em nossas vidas, estranhos esses que consigo fazer andar pra longe com meu ar deliberado de desprezo quando não entram pelo computador. Me sinto ridícula por deixar escapar todos os versos e palavras e pensamentos que me encontraram pela rua, pelo trem, pelos corredores, em casa. Escrevo sobre escrever. Clarisse disse uma vez em entrevista que sentia-se morta quando não escrevia. Não a condeno, não me parece nem um pouco absurdo a escrita. Demorei a entender o ÓBVIO: escrever sobre o ato de escrever não chega a ser uma confissão, apesar de exercer um poder parecido com este. É jusificar-se. justificar a si e para si o porquê se tornou intolerável o silêncio, o não dito de todos os dias. Estou envelhecendo. jovem e velha, ao mesmo tempo. Quando mais nova, julgava que a morte de minha mãe, a ausência do pai e uma família estranha que eu repugnava me tinham tornado madura antes do tempo. Desprezava aqueles da minha faixa etária, tão infantis, tão estúpidos, tão inúteis, tão inocentes perante as rudezas do mundo. Mas eu cresci, ou decresci, ou qualquer outra coisa. Como alguém poderia sentir orgulho de ser velha na adolescência? Como alguém poderia qualquer coisa dessa estirpe? Mas senti. Desprezei cada centímetro de mim. Mentia para os outros e para mim mesma, e me reconfortava a mentira. Passou algum tempo, não muito, mas muito tempo, e fui sendo levada pelo clamor do cotidiano à mentira. Essa parte tão nevrálgica do mudo adulto só me foi apresentada agora. Ser adulto é mentir. Para os outros quando devemos nos preservar, para si para preservar o outro talvez, ou para deixar que se foda, que se exploda, que se espalhe desde que não respingue na gente. Que gente? Só tem eu.
É justamente por isso que se escreve sobre escrever. Por isso e por muito mais. Pelo eu. Esse eu que hipocritamente dizemos a nós mesmos e aos outros que deveria ser abolido. Todos nós, flertando com os valores da classe média, diremo-nos sob influência do Nietzsche genealogista que destrói o sujeito de conhecimento no processo de construí-lo. Diremos mais: diremos que a alteridade vem antes da diferença, evocaremos isso com olhos marejados. Somos tão dignos. Por favor, nos ergam um busto na entrada de cada prédio universitário. Diremos de tantas outras formas, uma mais dissimulada que a outra. Não admitimos que estamos, cada qual a sua maneira, preocupados com o próprio cu, com a própria moral, com o próprio lattes, com o próprio orgasmo. Diremos isso todos os dias em público, na mesa de jantar, na sala de aula para fazer média com os professores doutores que insistem em nos corrigir, para diminuir o esforço intelectual dos nossos colegas, para nos exaltarmos, nos engrandecermos. Enquanto nosso pequeno teatro acontece, eles estão destruindo o país, retomando as rédeas escancaradamente autoritárias e militaristas, planejando por gente como eu no pau de arara, com um pau na boca e outro na boceta, pra endireitar essa vil conduta. Os Mourões da vida se regozijam na boca e nos dedos de meus colegas, que me odeiam. E seu ódio os fará gritar pelo empalamento público de gente como eu, seja lá como essa gente como eu for.
É por isso que se escreve sobre o ato de escrever. Tem um sentido que escapa das palavras, que não apequena-se diante dos grafismos, feito apenas no sentir. É por todas as coisas que vão ficando silenciosas depois que passam os minutos, passam as horas, passam os dias. Escrever é entre outras coisas encarar a própria covardia.

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