Depois de uma experiência tão estranha, a reencontrei na José do Patrocínio. Era dia, de semana, horário de almoço. Esperava o confuso sinal da República abrir para atravessar, e olhei pro lado. Ela estava a poucos passos, conversando com um homem de camisa abotoada, calça social e sapato preto lustroso, com um crachá no peito. Ela me olhou nos olhos, e me senti envergonhada e invadida. Virei a face e mirei o sinal, estava verde para pedestres. Caminhei tão rápido que não percebi que chegara na estação mercado. Tão rápido. Queria fugir dali. Fugir daquela lembrança. Fugir daquela solidão devastadora que senti depois que transamos. Nunca havia me sentido tão só. Foi uma solidão estranha e estúpida, que me inundou por alguns dias ainda. Desci as escadas do metro, indo de encontro as pessoas que desembarcavam. O mar de gente. Outro rosto conhecido estava lá, olhando para cima (fingindo deliberadamente não me ver?) enquanto a multidão passava fervendo entre nós. Que nós?
Corri, e notei que correra já dentro do vagão, olhando para as pessoas na plataforma. Por que fugira dessas mulheres? Através delas eu vi uma parte amarga de mim, um parte muito vergonhosa, daquelas partes que nos fariam matar para que não fosse reveladas em almoço de família. Cada uma a sua maneira.
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Uma me olhou nos olhos, tão fundo que tremi e corri, invadida pelo medo de sentir toda aquela solidão e fracasso novamente. Me chamara no Facebook, pois por algum motivo masoquista e estúpido éramos amigas na rede antissocial. Oi, te vi hoje na CB, acho que tu não me reconheceu. Como tens andado? Não consegui responder. Aquilo me feria, me cortava, me mostrava a minha mesquinharia. Não tinha problema nenhum com o seu casamento. Estava pouco me fodendo para seus compromissos monogâmicos. Mas me entristecia profundamente com suas explicações. As mulheres casadas passam por uma crise imemorável, estão afundadas em um relacionamento fracassado sabe-se lá desde quando ou porquê, sempre em vias de separação, sempre a um passo do divórcio, emperrado pela outra ausente. Muito conveniente culpar a outra, que não sabe ou finge não saber, que não pode escutar essas estúpidas justificativas. Ficam perplexas quando digo com um certo orgulho por minha fria sinceridade que não me interessa a monogamia alheia, que não procuro namoradas, que não exijo separações, nem longas conversas, nem qualquer coisa do tipo, apenas o sexo. Parece escandaloso. Ao invés de parar de se justificar para si mesmas em voz alta, intensificam suas palavras, querendo empurrar pra mim suas próprias crises de consciência. É tedioso. Mas ela conseguira um feito muito bizarro. Sem muitas iniciativas ou deliberações, sua partida me colocou de fronte à concretude da minha solidão. Percebi como vinha me envolvendo por aí com gurias que nem me lembro o nome para afastar esta ideia estranha de estar só. Estar só nunca me machucou, seguidamente sinto o ímpeto e a necessidade desesperada do isolamento, do silêncio, do não contato, do ninguém. Mas ali, naquela noite alcoólica, eu me senti fragilizada pela solidão, como uma criança franzina e prematura, que pudesse morrer sob os pingos da chuva. E me apavorei. Me apavorei por querer alguém ali, não para me consolar, mas simplesmente para ESTAR ali. Você foi um ótimo presente de aniversário, ela disse quando tirei meus quadris do seu rosto. Algo dentro de mim murchou com esta frase. Presente? Pelamor.Acho que a noite começou a gorar desse ponto em diante, numa sucessão de frases desnecessárias. Porque não continuara a gemer? Ou ficasse em silêncio? Ou dissesse qualquer outra coisa desconexa? É mesmo é? Tu tá de aniversário? E murchou mais um pouco. O restante do sexo foi meramente protocolar. E eu me esforcei para que não fosse, para não ser afetada por algo que não entendia a razão de me afetar. Levantei-me na casa que não era minha e pus um roupão, igualmente propriedade de outra pessoa. Me senti decadente. Havia uma garrafa de vinho que eu começara a beber anteriormente. Voltei a ela, um Cabernet Sauvignon. Sempre preferi Merlot, porém cabia perfeitamente no momento. Ela andava nua de um lado a outro, me olhando desesperada a procura de um molho de chaves. Me ajuda Deborah, tenho que encontrar essa chave, se não tô fodida. Tenho que estar cedo em casa para o café da manhã de aniversário com meu filho e minha esposa. A cena toda era patética. E a essas alturas, depois de beber e fumar a noite toda, estava bem embriagada. Fiz menção de levantar-me e ajudar na procura pelas ditas chaves, mas acabei por permanecer sentada de roupão, observando a cena. Ela clamava ainda por ajuda, talvez tão embriagada como eu. Levantei-me e senti a pesada tontura do álcool. O relógio informava 5a.m., eu começara a beber as 6 p.m. fazia sentido estar tonta. Fui-me escapando à rua, sentada num banco no pátio. Acendi um cigarro enquanto ouvia seus passos afoitos pela cozinha, atrás da tal chave. Achou a maldita. Chamou o Uber. E ele não vinha. Fui invadida por uma vontade estranha de rir. Mas me contive. Ela me olhava pelo canto do olho. Me dirigi ao portão. Ela me beijou a boca,  permaneceu com sua testa encostada na minha. Me afastei e tranquei o portão por dentro. Uma bêbada idiota somente já estava de bom tamanho. O carro chegara e ela embarcava. Me deitei no corredor lateral e chorei um choro pesado que não chorava há muito tempo.
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A outra olhou para o teto. Ainda tenho o livro que ela me emprestou, o volume dois de um quadrinho japonês que conta a história de uma família no pós bomba em Hiroshima. Nos encontramos algumas vezes, duas ou três talvez. Em todas tive a certeza de dever ir embora. De não procurar, de não ligar, de não me comunicar. Ficara muito claro que não estávamos procurando a mesma coisa. Ela queria as primeiras experiências com uma mulher: o eterno fetiche nojento e inconfessável. Mas não admitia. Deixou para dizer no motel. Era muito tímida, e isso me deixava muito desconfortável, me botava na posição de ter que manter uma conversa sozinha, o que é sempre maçante. Me olhava com um certo encantamento, como se visse um alienígena bonito. Aquele olhar me assustava. Sabia que tinha que ir embora,  mas preferi ficar e pagar pra ver. Acabei pagando o motel. (Não) Foi uma transa estranha. Não conseguimos transar. Seria impossível. Ela me dizia que não sentia nada, depois me dizia que sentia dor, depois dissera que comentara sobre mim com o seu terapeuta (!). Quando perguntei o que ele (ou ela? não lembro) dissera sobre mim, responde que me idealizava, me punha em um pedestal. Ri por dentro. Ri muito pela semelhança com a minha primeira transa com uma mulher, embora o desfecho tenha sido para mim sensacional. Pedi que perguntasse à sua terapeuta se ela lia Deleuze (!!) e me retornasse a resposta (!!!). Me compadeci um pouco. Imaginei e lembrei como era idealizar uma pessoa (se é que isso era verdade) e não ter suas expectativas atendidas de uma forma tão intensa. Sentia uma autocensura em sua voz, em seus olhos. Queria sentar e conversar, falar sobre aquilo, o que era puro egocentrismo meu, que não era nada além de uma desconhecida transa mal sucedida. Conversamos algumas amenidades. Conforme o tempo passava, me sentia sonolenta. até que dormi um sono tenso e intensamente povoado por sons e frios. Acordei e ela estava me olhando, o que me causou uma sensação inesperada de perigo. Fui ao banheiro, me lavei e me vesti. Preparando-me para ir embora. Tanto ela quanto eu estávamos deliberadamente impessoais. Eu, com aquela sensação infundada de estar em perigo, de querer ir embora dali. Ela, evitando me olhar sabe-se lá eu porque. Ali eu soubera que haveria um trauma a mais para a terapeuta ajudar a resolver e superar, o que me amargurou um pouco. Essas coisas assim, logo no começo da atividade homoafetiva costumavam ser dolorosas, difíceis de entender. Que direito tinha eu sobre aquele corpo? Que direito tinha eu de ser a primeira em qualquer coisa? Que poderes tinha eu? Que deveres? O dever de não falhar? De não virar trauma? E comecei a perceber o óbvio. O óbvio que fizera tantas vezes fugir de mulheres mais novas. O medo de frustrar, quase uma versão outra do medo masculino de broxar, só que AINDA mais ridícula e desconexa. Medo de fazer sofrer também, de ser carregada em uma memória por meses, anos a fio, como uma falha, um erro, uma má escolha, uma farsa. Mais que isso, medo de ser utilizada como um objeto, conscientemente. um objeto avariado, que deveria ser mandado para reparos, mandado pro concerto, para a reposição do fabricante. Um temor estranho de ter que servir de exemplo, de ter uma meta performática não atingida, de obrigatoriamente ser exigida tal qual uma atriz pornô, de ter meu prazer negado, jogado pro canto, em nome da iniciação de alguém. Completamente descabido eu servindo de ponto de partida para qualquer coisa, seja para sexo, ou afetividade, ou mesmo amizade alcoólica no banheiro de balada. Serei sou e fui menos que antimodelo. Apenas exemplo para não se repetido, repensado, relembrado. Nos primeiros momentos fiquei profundamente magoada com essa experiência, senti, com um certo exagero, que tinha sido usada de forma premeditada. O fato de não termos encaixado, nesse ponto, me deixava bizarramente feliz. Entretanto, sei que a machuquei de uma forma tão particular e íntima que nada que fizesse poderia reparar. Nenhuma palavra, nenhum gesto. Fiquei bem aliviada quando perdi meu celular, de certa forma, perdia o seu contato. Foi quando conheci a primeira.


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