Corpos gemem no espaço vazio das ruas. Escuro de ensurdecer. Ônibus que passam trancafiando pássaros em seus fones de ouvido. Das janelas dos apartamentos se vê as ruas parcamente sinalizadas, com suas setas desbotadas no asfalto rachado. Três, duas, uma hora. Tudo escuro, sem boemia, sem bar, sem flerte. Só as carreiras farinhentas, finas, compridas. Os narizes rápidos quase se atrapalham entre cheirar e soprar. Inalam. Tudo que há no prato quente. E o que virá depois de ranger os dentes?
Estampidos de tiros cortam o ar das lombas. Disparos para o alto. Assustam os encarceirados domiciliares.
Ele continuava nojento como em minhas lembranças escolares. Botava suas mãos pequenas e geladas em nossas coxas quentes. Cabelo barbado curto. Nós envelhecemos esperando coerência no passado. O presente grita. Vai descer. Todos esses olhos bocas rugas dedos não condizem com nossa infância.
O asco permanece através do tempo. Ele se põe na porta, a conversar com uma garota. É minha parada. Ele está na não-intenção de descer. Olho seus joelhos e penso em chutar-lhe a perna de apoio porta afora, para que caia e se esfole na noite fria. Uma pequena vingança pelos tempos escolares. Desço silenciosamente.  O ar corta. Gelado como navalha, ele corta. O caminho é curto. Os cães suburbanos latem interrompendo o silêncio das televisões familiares iguais. Ruas iguais. Casas iguais. Televisores iguais. Iguais às lembranças incoerentes da minha infância. Iguais ao ontem. Iguais permanecerão amanhã. Mesmo na virada de ponteiros que faz o amanhã virar hoje e, acrescentando uns tic-tacs, virará ontem.

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