Imagina o Despautério!

De uma forma ou outra, acabo voltando à mesma questão depois de voltas e rodeios: o que será daqui pra frente quando lá na frente eu tiver que olhar pra trás e ver que após a partida de meus ascendentes eu simplesmente não consegui descobrir de fato o que fazer e onde colocar todos os passos calçados que ainda andarei? abuso.
Esse pergunta me causa asco, nojento e dissimulado, que disfarço e desfaço esfumaçando esses devaneios. Imagina se com quarenta eu ainda não tiver casa própria e carro bacana e relacionamento minimamente saudável e poupança na caixa economica federal e ainda não tiver andado de avião e ainda não ter conseguido transar com todas as mulheres que quero e ainda não conseguir falar pelo menos mais três línguas estrangeiras e ainda não tiver conseguido fazer um seguro de vida e ainda não ter conseguido prosseguir com meus estudos e superar as náuseas que as pessoas vazias da academia me causam e ainda não ter aprendido a retrair minha cara inconfundível de nojo diante do fascismo e ainda não ter contornado todas as mágoas familiares que eu nem lembro mais o motivo e ainda não ter conseguido parar de fumar careta e ainda não ter tomado vergonha na fuça e começado meu tratamento medicamentoso pros distúrbios psiquiátricos que médicos mancomunados com a indústria farmacêutica me empurram goela abaixo e ainda não ter conseguido sair dessa cidade desgraçadamente estúpida e ainda não ter visto a vitória das minorias representativas rumo à equidade social e econômica e ainda não ter visto uma tulipa e ainda não ter reconhecimento profissional e ainda não ter um canto com puff confortável e luz apropriada pra leitura e ainda não ter um gato preto e um cachorro branco e ainda não ter visitado o túmulo de minha avó e ainda ter de prestar contas de minhas intimidades pra familiares frígidos e ainda dever satisfações de minhas extravagâncias financeiras pr algum gerente de banco com impotência sexual e ainda não ter conseguido nada daquilo que me disseram que eu teria que ter antes dos trinta e cinco mas ter sido autocomplacente e me permitir chegar aos quarenta sem porra nenhuma mas ter adquirido todas essas pequenas ilusões pra encher de orgulho sei lá quem e virar comentário na fila da padaria.
imagina o despautério!
Viver o hoje e ainda me surpreender quando percebo que não perdi aquela capacidade infantil de me por no lugar no outro e me perguntar se ela/ele/elo já comeu hoje toda vez que vejo um mendigo debaixo do viaduto da borges.
Não morra de fome. Ande de sapatos novos. Reclame por estar com sono, ou com roupa pra lavar, ou com boletos vencidos. Consuma itens, ideias e pessoas. Consuma afetos. Consuma orgasmos. Seja simpática. Arrase na balada. Pegue todas e não se apaixone, não se afete, não se misture. Não seja abusiva, e se for, diga aos outros nas redes sociais para não serem abusivos em seus relacionamentos. Enalteça a maravilha da vida de solteira. Viva rodeada de amigos. Deposite suas angústias na bebida. Seja livre, soma ou some, faça só o que você tem vontade, seja independente, mande tomar no cu.
Grite todas essas sacolas vazias de sentido no sentido alheio e mine a capacidade de sentir do outro.
Não assuma essa responsabilidade. Poste um textão no facebook que já é o suficiente.
Seja linda, fresca, com aquele frescor de banho recém tomado.Compre o valor da vida burguesa andando de boné do MST na cabeça. Dê MUITA risada.

Essa é a receita para esvaziar-se até tornar-se solo estéril pro sentir.

Não, obrigada.

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