Almoçando-se

Num sábado nublado ela se engoliu.
Sem náusea ou culpa ou ingratidão nem repulsa, mas sem fome ou apetite ou voracidade. Apenas serviu-se em prato vagabundo de bazar de vila e devorou-se.
Desmembrou-se pouco a pouco, depois de se descongelar quinze minutos no microondas. Emergiu sua antiga carne, desossou-se, tirou a pele arrepiada. Marinou em vinho branco durante 30 horas. Amaciou o que fora seu corpo íntegro. Sal a gosto e pimenta do reino, alecrim pra dar cheiro, e muita cebolinha picada miúda. Picou-se com delicadeza sem medo de cortar os já desmembrados dedos, desprovidos de falanges. Refogou cebola e alho, muito alho, alho pra cacete, em frigideira antiaderente Polishop com margarina pra não esquecer que o plástico está em todos os recôncavos reentrâncias e prateleiras, travestido de múltiplos nomes, inclusos os de comida. Selou suas duras carnes com azeite de girassol, cebolas e alhos já diminuídos e translúcidos pela ação do fogo. A cozinha inteira inflou-se com seu cheiro glandular. Fritou-se e pôs água, deixou ferver suas duras carnes de músculo. Mais pimenta.
Seus cortes nobres conservaram as camadas de gordura. Saborosos peitos barriga e bunda, antigamente alvo de deleite. Cozinhou-se. Em fogo médio para não queimar. Desligou o fogo após 45 minutos de cocção. Pôs a mesa. Apenas um copo de água gelada e o duralex transparente com o fundo diversas vezes riscado por faca e garfo. Fez-se ensopada para tomar-se de colher. Saboreou o gosto de si mesma por vários minutos, sujando o lábio superior com seus caldos e suculências. Comeu-se inteira. E depois de engolir cada fiapo de carne, cada caldo linfático, cada fibra muscular e gotícula de gordura, dispensou seus ossos para os cães comerem.
De sua existência e dos pedaços de sua alma que tinha espalhado por aí, sobrou apenas seu perfume na cozinha, misturado ao alecrim.

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