Cotidiano

Desde sua entrada no ônibus eu senti medo loucamente, de um não sei o quê de despersonalização. Não me lembro bem das cores da condução, embora suas lanternas traseiras fossem compridas e vermelhas, seguindo a ordem simétrica dos frisos na lataria como em um filme latinoamericano. E ela foi. Foi embora. Ela, que tem ou teve muito de mim, ela que fui eu, que sou eu, que hoje é ausência. Embora o costume faça uma morada amarga nas esquinas pouco movimentadas da minha cabeça, em lugares conhecidos ainda olho para todos os lados como criança perdida da mãe, espantada pelo desconhecimento dos caminhos e dos lugares. Percorro pela décima, décima primeira, décima segunda, décima terceira, décima quarta, décima quinta até as centésimas vezes as ruas que já percorri a anos, meses, semanas, ontem. Elas ainda guardam o frescor da novidade, embora não as reconheça mais. Talvez seja uma síndrome que acometa mais frequentemente pessoas que retornam ao lar após saídas estranhas e promessas de não-regresso; um estado de letargia e animosidade com o usual, o rotineiro, o mesmo, o mesmo, O MESMO, O MESMO, O MESMO, O MESMO, O MESMO, o mesmo que nos diminui em todos os pequenos gestos cujo maquinário mental não é ativado para realização. O olhar ao redor no regresso por um momento acalma o coração quando percebe as coisas nos mesmos lugares, os mesmos vizinhos, a mesma praça, o bucólico do subúrbio, as mesmas atendentes de padaria ou diferentes bocas movidas pelo combustível da mesmice, ouvindo os mesmos pedidos, os cachorros que latem na hora do lixeiro,os mesmos tiroteios e acerto de contas das facções. Reconfortante para quem procura um parada em meio à uma jornada conturbada de destruição de si mesmo e de todas as expectativas líquidas dentro de cascas muito finas, nunca chocadas, desovadas no primeiro matagal escuro de meu bairro.Mas a quietude muda de figura, pois o mesmo talvez venha até nós após nosso desprezo explícito e desdenhoso para chantagear-nos cotidianamente: mude-me ou mudo-te. Mate ou morra. Ninguém quer ser o assassino do porto seguro de ninguém, de nenhuma comunidade, de nenhuma multidão, nem mesmo dos milhares que compõe um único ser. E por essa bondade covarde vamos nos enfiando nos ônibus que rumam pra longe, nos trens que nos transportam de cidade em cidade, nos aviões que cortam as nuvens por dentro, nos carros populares em rodovias federais. Vai-se pra longe uma fração fundamental à sobrevivência do absurdo morno do cotidiano: a fúria desmedida ou a resposta ríspida, mas contida, que mata ao invés de morrer. Vai-se perdendo nas burocracias, nos papéis nunca conferidos, nos bilhetes escritos às pressas, nos tickets de embarque e desembarque, nas mensagens não lidas do aplicativo. Assim como um dia a mulher forte que fui entrou em uma condução e fiquei eu, fraca fibra fina, a olhar espantada para o assombro do cotidiano de 20 anos atrás. Partir é deixar-se ir, retornar demanda esquecer-se de quem se era quando partiu. O cotidiano tem o perverso poder de arrancar de nossas entranhas nossos acúmulos, que são nós mesmas afinal de contas, mas que são nossas possibilidades de inusitado. O cotidiano esmaga nossas expectativas, esmaga nossos detalhes, esmaga nossa ira, esmaga nossa roda. Espreme nossas pele carne e musculatura para desvencilhar a alma das costuras que usamos para novas roupas, deixando nossos corpos e mentes despidos da memória do inusitado. Ele nos mata através de seu ritmo demasiado lento para nossos anseios, demasiado rápido para o planejamento do que ansiar. A espera é a alavanca do bate pé na fila, mas não consegue crescer como uma larva para bater asas como borboleta: desaprendeu a esperar se não houver fila e um administrador, burocrata, carimbador no guichê. Temos que matar o cotidiano e sua artilharia de tédio, antes que ele consuma todas as mulheres fortes e criativas que habitam meu corpo, temporariamente ou que já organizadas em cortiços e associações pelas dobras de braços e pernas, nas junções de articulação. Temos que matar o cotidiano antes que ele reúna seu exército e aumente seu número de seguidores e se infiltre em todas as brechas para transfigurar toda a esperança em espera de fila, todo o diálogo em cumprimento de parada de ônibus, toda a loucura previsível, todo o inusitado devaneio, todo ato de rebelião em solução criativa, todo tesão em ansiedade, todas mulheres fortes em fugitivas, todas as mulheres fracas em desorientadas dependentes.

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