E não houve aquele momento de final, onde eu pudesse ter tido o tempo suficiente pra reconhecer a exatidão dolorida das tuas palavras. Pro meu orgulho talvez, não há mérito, nem acertos, nem originalidade em porra nenhuma do que disse: eu tenho os olhos do meu pai.
E por todas as ruas os antigos familiares me diziam a mesma coisa de um homem muito velho e carrancudo que eu vi em uma foto em uma igreja católica num batizado. Só reconhecia a minha mãe naquela foto. Ela olhava ternamente, com um sorriso genuíno no rosto, para volumosos panos brancos em seus braços, que os familiares antigos por todas as ruas da cidade diziam que era eu. E aquele homem, de olhar penetrante e cara de contrariedade, longe dos braços dela centímetros suficientes para atestar o protocolo da foto: o resto da célula somática. Por alguns anos isso foi o que conheci desse desconhecimento, a quem todas me atribuíam os olhos, que tanto odiava na adolescência, por achar pequenos demais. Horas no espelho com lápis e contornos escuros. Descaracterização. E a pequena eu da infância, lá pelos oito ou nove anos, já nem me lembro, levantou da escadinha de cimento e brita da frente de casa, no dias dos pais, meio cansada. Eu tenho os olhos que queimam e revelam o mito do fundo do baú da vergonha familiar, vergonha que por muito tempo não entendia, quando minha vó me olhava e dizia com uma emoção indefinida na voz: tens os olhos do teu pai. Homens carrancudos a parte, os meus olhos aumentaram, como outras tantas partes que deixaram de diminuir, embora se cante por aí que não diminuem mais por rebeldia, mas que na verdade, caíram na malha fina do esquecimento e do desleixo no qual vou me apagando nos últimos dias. Tá foda.
Não houve o tempo final em que eu pudesse ter elogiado a precisão cirúrgica com que tuas palavras me feriram quando me acusou de não conseguir agir com minha própria cabeça e eu me defendi ferrenhamente e com minha língua bifurcada pois tu me traiu quando vomitaste tua incompreensão sobre meus ouvidos. Hoje, e somente hoje, pude perceber teu acerto, digno de elogio. Eles se implantaram no espaço entre minhas orelhas (afinal de contas entraram em mim através delas graças a um conjunto de ritos iniciáticos) fizeram raízes profundas no meu crânio e pressionaram de tal forma que ainda não entendo como minha cabeça não implodiu. Eles entraram de uma forma tão incrível que gritei e li em voz alta e delirei com as pupilas dilatadas quando os enxerguei em meu quarto na penumbra e gozei quando percebi que eles finalmente entraram em mim para me matar, matar meu crânio, diminuir os olhos de meu pai. E eu dancei as músicas estranhas que soavam do teto sozinha e nua comecei a entender algumas sutilezas achando que meu rosto iria brilhar mais por sua chegada todas as vezes que eu sentisse o calor do sol na face. A verdade hoje é que estou morta em um sentido muito particular de morte pois morri e eles continuam pressionando meu crânio e eu já não sinto nada, nem dor, nem vergonha, nem abismo, nem regozijo. E por todos os corredores que eu procurei estupidamente os seus interlocutores para cimentar suas raízes tão fundo em meus ossos que me atingissem o tutano e toda a nervura capaz de vibrar, em todos esses corredores eu encontrei uma fria alma pra me abrir uma porta através da orelha convidando-os ao meu corpo como se ele fosse uma moradia pronta e com mobilia planejada para a longa estadia de meus invasores. Eles entraram, sentaram no sofá roto da minha massa cinzenta.
Eu quis.
Em todos os momentos de aperto e destruição eu quis, não apenas a corruptela mas o esfacelamento daquela parte que eu não julgava importante até então. Eu comemorei e disse aos quatro ventos o que estava acontecendo e agradeci meus algozes por suas benfeitorias e pela confiança em mim, pelas cartas de apresentação que recebi. Anotei em minha agenda todas direções possíveis e todos os esquemas que a cuca fundida não conseguia para de jorrar para o fundo do meu nervo óptico, já cego à essas alturas. Eu estava absurdamente feliz, sentindo-me competente e entusiasmada por ter chegado tão longe mesmo carregando os olhos pequenos e rasgados diante daquela imensidão de merda que brilhava e cheirava memórias de Glade flores do campo. Eu aplaudi e fui muito contente te contar as coisas maravilhosas que eu havia conhecido e tu tirou sarro de mim de primeira, de segunda me criticou de um jeito velado mas com tão pouco esforço que até os pelos do teu braço riam da minha cara e eu fui tomada por um ódio tão genuíno das tuas palavras que não pude me conter. Aquele ódio me despertou. Não fosse por ele, talvez eu nunca tivesse me flagrado. É tão tarde pra isso tudo. mas muito tarde.
Agora a vergonha e os olhos do meu pai, estampados na minha cara fazem muito sentido. Não fui eu. Não sou eu. Não serei eu e em cada fibra do meu ser eu hei de reconquistar meu crânio, mesmo que seja para envernizar todas essas rachaduras. Me roubaram a potência no embrião, antes da formação do sistema nervoso central, e empurraram orelhas adentro esse monte de gente que eu tanto admirei mas que agora só serve para atestar a minha incapacidade absoluta de reagir a essas vergonhas que não são minhas, a essas antiguidades que não me pertencem, a esses olhos que herdei ilicitamente, fora do inventário.
Os olhos são como os pensamentos: não são meus. Pra qual SAC se liga em uma situação assim?

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