Sem coragem pra pular. Parte 1

Hoje, o relato sóbrio de um legista do IML.

Sentara eu, em um notebook emprestado para escrever um relatório para a Disciplina de Estágio em Arqueologia. Estava ansiosa, a entrega dos resultados parciais era sábado pela manhã. Estávamos às 00:15 h de sexta-feira, aos dois dias de novembro de 2016. Estava atrasada, com mais faltas que deveria em quase todas as disciplinas. Semestre difícil, ano de golpe judicializado no país, manifestantes sendo presos no Rio Grande do Sul, um morto em ocupações, outro morto no Rio de Janeiro e dois desaparecidos.Vejo amigos com problemas pessoais, passando por lutos; vejo gente dissimulada que me abraça e me felicita não sei porque, gente que gostaria de nunca mais ver. Neste ano, tivera três hipóteses diagnósticas: Agorafobia, Síndrome do Pânico e Depressão em plena época de provas em setembro. Perdi emprego, ganhara alguns dizeres irônicos de minha tia em relação aos meus problemas, estava apática e sem muitas perspectivas, mas estava apaixonada. Eu, logo eu, que vinha resistindo aos relacionamentos, que queria estar só, que queria foder sem compromisso, que queria distância das armadilhas de pernas quentes e corações frios. Eu sou intensidade, sou milhares, sou extratos, sou interrupção em conversas para arranjar formatos engraçados pra nuvens, sou a desatenção para ouvir o farfalhar do vento nas folhas de seres vivos sésseis. Logo eu, que me prometera não dizer eu te amo, que prometera não me envolver, não me machucar. Eu caíra.
Conheci ela no Tinder, era ex casinho de uma colega de faculdade. Quando demos o famigerado match, ela estava namorando. Marcamos uma cerveja, ela não compareceu, e eu também não pude ir não me recordo o porque, provavelmente estava quebrada. Não fomos. Logo depois soube que não foi devido ao ciúmes da companheira. Meu deus, que mina passiva, pensei com meus botões. Logo depois ela fora assaltada, perdera celular e ficamos sem contato. Mas tínhamos o tal de Facebook para conversar, embora não o fizéssemos. Como ela era, pelo menos pelas fotos, bonita demais, desisti da ideia, e acabei por esquecê-la. Tive outras mulheres, outras fodas, paixões tórridas, ex- namorada psicótica em minha cola, nem me lembrara dela. Retornamos às conversas e logo fui tomada por um Estado de Paixão avassalador, desses sem sentido para além dele mesmo como diria o grande Foucault. Entretanto, essa história fica pra outro dia, pra outro momento, pra outra intensidade.
Estava desesperada com o relatório, obviamente tinha deixado para última hora. O assunto era incrível, tinha adorado o recolhimento da empiria, estava atônita e com análises dançando confusas em minha cabeça, esperando a captura da linguagem para tomarem o formato acadêmico. Estávamos, eu e ela, passando por dias estranhos após um desentendimento, eu sentia que as coisas não iam bem, sentia a formalidade quando conversávamos, sentia a fuga através das amenidades, sentia a resistência em ir ver-me. Mas calava.

Eu sempre percebo. Eu sempre reparo. Eu sempre sinto. Falo ocasionalmente.

Sentada e escrevendo o relatório, vibra a tela negra com mensagens do aplicativo de conversas. Era ela. Amenidades. Como foi seu dia. A colega fulana continua chata. Tive dores. Estou atucanada com a aula, escrevendo relatório. Te amo. Saudades.
O maldito áudio chega, com aquela voz erógena e apaixonante, que só os apaixonados captam. Ao fim, a frase indevida para os que tem ansiedade. Precisamos conversar.
Não conseguira mais me concentrar no relatório. Alertei-a de que esse dizer sempre é gatilho pra minha ansiedade, começava a tremer e já esquecera das análises antropológicas que deveria realizar. Insisti que me dissesse, pelo menos adiantasse o assunto, pois já não conseguiria escrever de qualquer forma. Veio o esperado: não estava mais feliz ao meu lado, tudo estava bem, o emprego novo que estava lhe deixando feliz, o bom relacionamento com a família tão almejado mas no amor... prefiro sair agora que deixar pra depois ....porra...é difícil falar isso. Uma onda quente percorrera meus braços de pelos eriçados. Respondi dizendo que sim, deveríamos conversar, precisávamos, mas eu insistira em marcar recebendo recusas. Ficamos conversando até as 03:31 da manhã. Adeus relatório. Estava fodida. Entre áudios, falara pra mim mesma que não iria chorar. Até que, explicando os porquês, me dissera com voz de áudio cotidiano que eu só consigo ficar com pessoas que eu consiga ajudar. já tive amigas bulímicas, que praticavam automutilação e conseguira ajudar a superar. Eu não consigo te ajudar, então fico calada. Falta alguma coisa, que eu não tenho contigo.
Enlouqueci.
Não pelo teor, mas pela mentira. Quantas crises de ansiedade tinha me ajudado a superar, quantas vezes estava a ponto de explodir, juntar meia dúzia de calcinhas e sair de casa, fosse pra dormir embaixo da ponte, por não suportar mais o peso da convivência familiar, quantas vezes, pensara de novo na passarela da Estação e nos caminhões carregados de combustível, afastando de minha mente graças ao seu auxílio. Era mentira. Ela sabia. Estava irada. Ficara irada. Não chora. Não chora. acabara o áudio chorando e batendo na mesa, afirmando impropérios sobre nós duas.
A raiva me faz chorar. A injustiça me faz chorar. Não aceitara, como ainda não aceito, seus argumentos. São pífios, são rasos, são pequenos, me parecem mentirosos, me parecem fugidios. Eles parecem relatos de sensações, dizeres de percepções, não demonstra fatos, não há ocorridos, parecem palavras que proporcionam escape. Mas o que me parece não importa.
Voltemos aos fatos.
Entre áudios que vinham e que iam, algumas confissões que acabaram por relaxar: acabamos por dar risadas, embora o que estava dito não tenha sido desdito. Eu, sempre passional aos meus impulsos, às minhas paixões, falara que esperaria por sua visita, caso quisesse. Pedi quinze minutos de seu tempo, após o trabalho. Disse que lhe esperaria em frente a um bar que já tínhamos frequentado, das 22:00h à 00:00h, para que me desse tal notícia olhando em meus olhos, como sempre fora entre nós até então. Ela disse que não iria. Eu mantive minha posição. Eu o faço. Eu assumi o compromisso, fui apresentada para família. Mantenho minha palavra como uma pedra mantém-se pesada e pedra, numa metamorfose que alguns conhecem, mas sempre pedra.
Isso fora as 04:31h, do dia três de novembro de dois mil e dezesseis.

Sai o Legista de Cena.

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