Agradeço por não estar escrevendo no papel. Tá tudo tão rápido, a cabeça mais a mil do que jamais estivera. Os pulsos atacados de tendinite não acompanhariam.

“O poeta é poeta não por amar, mas por sofrer de desamor”.

Compus essa pequena frase há quatro anos. Não acredito mais nela, apesar de tê-la escrito como verdade. Eu sou outra.

Não queria falar de desamor. Essa palavra não me corresponde. Quero falar de palavras. Quero escrevê-las para leitura posterior.

Não é como se não houvesse me apaixonado perdidamente outras vezes. De maneiras intensas, como em uma avalanche. Passei dores, chorei até parecer secar. Não aceitei términos, mesmo sabendo que naqueles casos que não havia retorno. Não compreendi razões, concebendo a ideia da desrazão de se apaixonar. Perdi sono, perdi fome, perdi tesão, perdi  vontade de sol sobre a pele. Recorrendo ao clichê, como não poderia deixar de ser, dessa vez está tudo diferente.

Perdi minhas formas, perdi minhas fronteiras. Sou um espaço desforme flutuante pelos ares não calmos que farfalham as folhas, fazendo-as falar aos sussurros. É o desejo. Para a psicanálise ortodoxa, o desejo é a ausência, a falta. Por isso preferia falar em prazer. Contudo a falta sempre estivera entre nós como um cordão umbilical rompido no pós-parto. Desejo e saudade são instâncias diferentes: a saudade é o rememorar, não é desejo, e sim afetar-se pelo que se lembra. Lembrar, recordar (re-cordis = voltar a passar pelo coração). Recordar é processo de sensação, de experiência. É a experiência do não presente que ainda guarda potencial de provocar sensações, de invocar sentimentos não para repeti-los, mas sim para recriá-los. Nossas memórias são uma coleção de afetos (aquilo que afeta= aquilo que muda) que nos tomam para que sintamos coisas por necessidade, ou por capricho.


Sou tomada por desejos e corrompida por saudade.

Tantas vezes eu imaginara, me sentindo estúpida e infiel a mim mesma, nós duas em algum lugar como uma fila de cinema, mesa de bar, banco de praça, beira de praia. Imaginava o quintal de um sobradinho simples e simpático, sem luxo, com flores e uma pequena horta. Imaginava momentos de briga, desentendimentos de nossos gênios complexos que se emaranharam um no outro tantas vezes e por coisas inexplicavelmente fúteis. Nossas brigas hipotéticas carregavam uma pitada de irrealidade, eram envoltas em uma beleza exógena. Quantas vezes precisei corrigir minha própria imaginação: “- Tu tá pensando baseada só em ti, e se ela precisar voar para lugares onde tuas asas não consigam te levar?”. Não percebi o óbvio. Quisera tantas vezes ser fria, estúpida, calculada o suficiente para ceifar o sonho in vitro. De repente estava ali, sonhando acordada com essas pequenas projeções totalmente imaginadas que tanto acometem os ditos apaixonados. Estava sonhando com tudo aquilo que prometera não sonhar, pois o sonho invoca nossas potências, invoca algumas necessidades  vergonhosas, já que são incontroláveis: sonhos são, entre outras coisas, desejos de presente no futuro. A chave toda fora essa. Lembro-me que ao chegar em casa e pensar sobre a imaginação desse futuro sereno onde tua presença completava todos os espaços, senti-me esvaziada de mim mesma. Como assim? “– Sim, ela é adorável. Sim, é uma criatura da qual não sou digna. Sim, ela é criatura intensa de mil sensações faladas pelos olhos. Sim, ela é tudo isso e eu sou pequena o suficiente pra ser esmagada como uma pulga entre unhas de polegares. Ela me faz perder o controle de mim. As minhas auto promessas valem merda nenhuma na presença dela, pois ela é intensidade, e entra numa frequência minha estranha, na minha intensidade mais particular, que eu julgava adormecida. Minhas regras não valem. Estou protegida das desgraças do mundo, do ônibus, da parada, de casa, de minha própria cabeça, da ideação suicida, dos outros, dos monstros. Estou desprotegida de sua intensidade. Eu sou o Ícaro encantado com todo o brilho e calor, e minhas asas queimam perto dela, que exerce a função Sol.”

E tal qual Ícaro eu caio em chamas no chão seco e rachado dos pensamentos rechaçados.

E isso, é saudade?

Eu não vivi isso pra além da mente, da projeção inocente. Lembro, ou melhor, recordo de momentos que me atravessam. Vários ontens cruzam a rua do meu tele encéfalo carregando pela mão esse motor do sentir montanha- russa. Do sorriso besta à risada esquiza terminada em lágrimas. Mas sinto o desejo, sinto a falta da possibilidade de imaginar esses devires imaginados de nós.
Eles estão vivos em mim. Eles vivem em mim. Eu imagino.
Minha imaginação ainda voa. E o que a alimenta é essa intuição aguda e doída que meu peito me grita no rasgo: não hoje, não amanhã, não o fim. Meu peito sabe, com uma certeza que não sou hábil em explicar a origem, que existe uma escritura de outro plano que escreve nós na mesma linha, em uma vivência enroscada e dançante, onde uma e outra, embora elas mesmas, escolham em alguns momento se confundir ou imergir na própria confusa prévia. Rimos. Meu peito ri da minha cara.
Apenas um fluxo é fluxo-cortante: “- Não estou mais feliz do teu lado, e eu prefiro sair agora que depois.” Preferiria que tivesse sido infiel.  Preferiria mesmo que dissesse não te amo mais. Preferiria que dissesse ter conhecido alguém, ter vontade de solidão e vontade de si mesma. Fazer-te infeliz é erro que não perdoo e tento inútil e desesperadamente entender, contra minha vontade. Esse fluxo-cortante irrompe e interrompe toda saudade que não agoniza, pondo-a no leito moribundo da morte. Não estavas feliz, como posso eu egoistamente desejar o que te fere? Mas sou egoísta contra minha vontade, e sinto saudade.
Saudade do teu corpo brando-quente sob meus dedos, que explodia em loucura no contato com minha epiderme marmórea. Saudade da tua pele de liga-ponto de constelação, desenhada com pincel. Saudade especialmente desses olhos e do brilho que deles emana. Saudade dos teus joelhos marcados de tendões rompidos. Saudade de tua face redonda de maravilhas. Saudade no infinimilímetro. Saudade dos teus dizeres mudos de olhares. Das edições de pensamento que me privava com os lábios e me contava com os olhos. Saudade da risada, caralho que risada gostosa que fazia virar minha alma, e ainda faz toda a vez eu ouço-a como eco na minha mente.
Mais saudade do teu corpo, só da tua alma. Saudade da tua alma que vertia pelos olhos como lágrimas sobre o meu ombro- embora honrada pelo teu silêncio- preferiria que não tivesse que tê-las derramado. Da tua alma que formava gotículas de suor sobre o sol e sobre a cama, sob todos os calores reconhecíveis. Da tua alma que escapava entre os espaços dos dentes como ar e revirava os lábios em sorrisos. Da tua alma que permanecia temporariamente sob a terra que teus pés revolviam no caminhar. Da tua alma que escapava pela testa quando me olhava e franzia o cenho, permitindo-se a sensação de mim e minha inevitável e amarga confusão. Da tua alma que saia no hálito quente do teu sono e da tua vigília, presenteando o ar com os fios temporários de teu ser. Da tua alma que expirava de ti mesmo sem mover-se, e que de tão leve deixava todo o ar carregado do peso das tuas sensações multiplicadas por cem.
É por essa alma, por esse corpo, por essa história que aprendi a admirar quando tive a honra de ser ouvinte de alguns fragmentos, e é também pela beleza das minhas memórias e da minha imaginação. É por entender que a diferença do que já senti e do que sinto é de natureza: são coisas diferentes. É por tudo isso e mais pelos indizíveis, indecifráveis e esguios sentires que carrego no meu peito não como fardo, mas como graça, que entendi que tuas asas são maiores que as minhas.

Voe para o horizonte do sol poente.


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