Postagens

Mostrando postagens de 2017

Cotidiano

Desde sua entrada no ônibus eu senti medo loucamente, de um não sei o quê de despersonalização. Não me lembro bem das cores da condução, embora suas lanternas traseiras fossem compridas e vermelhas, seguindo a ordem simétrica dos frisos na lataria como em um filme latinoamericano. E ela foi. Foi embora. Ela, que tem ou teve muito de mim, ela que fui eu, que sou eu, que hoje é ausência. Embora o costume faça uma morada amarga nas esquinas pouco movimentadas da minha cabeça, em lugares conhecidos ainda olho para todos os lados como criança perdida da mãe, espantada pelo desconhecimento dos caminhos e dos lugares. Percorro pela décima, décima primeira, décima segunda, décima terceira, décima quarta, décima quinta até as centésimas vezes as ruas que já percorri a anos, meses, semanas, ontem. Elas ainda guardam o frescor da novidade, embora não as reconheça mais. Talvez seja uma síndrome que acometa mais frequentemente pessoas que retornam ao lar após saídas estranhas e promessas de não-reg
E não houve aquele momento de final, onde eu pudesse ter tido o tempo suficiente pra reconhecer a exatidão dolorida das tuas palavras. Pro meu orgulho talvez, não há mérito, nem acertos, nem originalidade em porra nenhuma do que disse: eu tenho os olhos do meu pai. E por todas as ruas os antigos familiares me diziam a mesma coisa de um homem muito velho e carrancudo que eu vi em uma foto em uma igreja católica num batizado. Só reconhecia a minha mãe naquela foto. Ela olhava ternamente, com um sorriso genuíno no rosto, para volumosos panos brancos em seus braços, que os familiares antigos por todas as ruas da cidade diziam que era eu. E aquele homem, de olhar penetrante e cara de contrariedade, longe dos braços dela centímetros suficientes para atestar o protocolo da foto: o resto da célula somática. Por alguns anos isso foi o que conheci desse desconhecimento, a quem todas me atribuíam os olhos, que tanto odiava na adolescência, por achar pequenos demais. Horas no espelho com lápis
O mesmo-adverso bizarro ou Da Esperança. Disse para parar de filosofar. -Não posso mais ouvir isso! Onde estão as tuas opiniões? Você só sabe escapar. Que injustiça! Levara alguns anos para entender o mínimo dos pensamentos anteriores. Construí com eles um abrigo para os dias cansativos e noites insones. Remoía-me ao perceber que as questões vem exaustivamente sendo colocadas com novas molduras em outros mesmos tempos nossos. E pasmei. Ora, como poderia parar? -Você e seus autores tem resposta pra tudo. É o que acontece com as mesmas perguntas. O meu original- meio plágio, meio irreal - escrevi naquelas folhas bonitinhas, com linhas vermelhas e joaninhas no rodapé. - Ai que lindo! Deixa eu postar uma foto dessa poesia. E não me leu, ou leu e não me viu, ou viu e não me reconheceu pois ali eu estava rearranjada em meus elementos. Ali estava toda a pólvora ensacada fragilmente em tramados de penas. Guardastes no roupeiro para que as demais frequentadoras do teu corpo não
Não queria que você fosse, que ficasse inacessível agora. Sei que lhe conheço a pouco, e mesmo que seja um pouco mais os outros, ainda é pouco. Não que existam verdades que demandem tempo para as palavras, é que são muitos dizeres. Dizeres até atordoantes, até chatos, até desinteressantes, até estúpidos: aqueles cujas torpeza e vulgaridade desencorajam qualquer escuta.E são longas as horas nas quais a escuta me fora negligenciada. Não julgo, ou melhor: julgo todas, não condeno ninguém, nem ouvido, nem escuta, nem palavra. São essas coisas sabe? que vão perdendo a voz em lamúrias pelos cantos, mas não só lamúrias: os cantos e os contos silenciados nas esquinas, nas esquivas, nos tetos e nas paredes. Esses sussurros que comunicam no espaço pretensiosamente ocupado entre minhas orelhas. -Você reparou nas lições do vento? Nos sons ancestrais que nos aconselham? Faz-se presente no farfalhar das folhas desacreditadas. -Você ouviu a mudança? Dizem os boatos que trocamos de problemas, mesmo
Escrava dos próprios silêncios Jogando pedaços de pão aos próprios tormentos à beira do lago Perdendo-se em todas Para se enc..ontrar Qual será a solução quando a aposta gorar E o tempo requisitar o convívio de si consigo? Quem irá perder os olhos e os ossos nas paredes do inimigo? Quantos nós para desmentir a rede de pescar estrelas do céu que já clareou?                                                     Pra quem será lançado o agouro? Paz, quietude, tranqüilidade: Pede, mas pede com fé Pode ser que a tua oração sedenta Horrorize a sacerdotisa atenta Quando ela perceber que a paz tu pedes enquanto a guerra sustenta E horrorizará Pela gritante distância entre letras e gestos Não soube expressar bem teu protesto Pede por sentimento cujos atos bradam: -Perverso! E pedes, clamando auxílio Implora ajuda para resistir ao exílio Que criastes para auto-convencer que foi tolhida a liberdade Mas o quão livre é quem se reivindica uma verdade Cuj
Há um ímpeto de loucura em  cada gesto comedido Há fúria homicida escondida nos abraços de harmonia Há pesar de ontem no perdão de hoje Há perdão de ontem na falta do porvir Há lágrima interrompida na vista esmaecida Há vulto sem cor disfarçado de quebra-pudor Há sempre aquela palavra não dita, sempre esperança de melhora pós-sono, sempre certeza de equilíbrio depois do torpor Há. Há festas negadas nas cabeças grisalhas...arrependimento Há crise geradora em todo poeta desconhecido E um pouco de mártir em toda voz aumentada Há um poeta morto de tédio atrás do aplicativo Alma desesperada em todo site de encontro Há desventura em todo sonho, frustração e desconsolo para calibrar Há ajustes no perfeito, arremates no pronto e retoques na tela exposta que ninguém fez Talvez não se perceba, mas sinta em cada fibra fina que tenta tremer Há audácia no cotidiano Rega-se de tédio o exagero Tempera-se o ócio da labuta infinita, mais-valia da alma que insistem e

Língua

Imagem
Boca eu beija e que diz...língua abrigada Língua torpe que lambeu postes e genitálias Que disparou gritos de ordem Que umedeceu o lábio superior Que esfregou os dentes sujos Língua com grossa camada de amido Língua azeda de amanhecer. Língua que tocou todos os pelos dos paralelepípedos Língua que pinta o macio Língua epilética que dissolveu o ácido Que provou o terroso e mofado cogumelo-morango de Caio Fernando Que recitou Blake para mal dizer Newton Que cansou de explicar o indizível Revigorando-se nos movimentos entre-dentes Que lambeu a goma da seda e selou o baseado. Que adormeceu após o teste da cocaína encontrada Que se adoçou na festa de Cosme e Damião Língua bifurcada de cobra e de lagarto. Língua morta que agremiara comunidades outrora Língua desconhecida dos transes religiosos Língua travada na loucura do cotidiano Língua que assassinou línguas nos bancos escolares Língua que amou embaixo das escadas Língua-dedo em cada esc

Será que estava maluca e tudo aquilo não era real? Parte 1

A escrita apreende a sensação indizível. A escrita torna suportável o terrível Terrível o corriqueiro Maravilhoso o despercebido Escrever é escolha Escolher é necessário para seguir em frente. Tínhamos saído da faculdade e ido até o metrô a pé. Embora meu transporte saia de dentro do campus, pela companhia e pelos papos sobre política e filosofia, decidi ir até o metrô e de lá, pegar o ônibus. Chegando próxima a parada, percebi que devido ao nosso passo lento, a condução das 22:20 h já havia passado: teria de esperar o próximo, às 23:20 h. Ver meus colegas subirem a passarela e ficar ali sozinha me apertou o peito, de uma forma peculiar, como se algo fosse acontecer. Bairro universitário costuma ser violento, ter muitos assaltos e pensar sobre certamente causava agonia. Esqueço. Sento no banco da parada, à beira da rodovia federal 116. Carros e caminhões passam velozmente deslocando o ar e estremecendo a estrutura de metal. Conjecturo se o ônibus não atrasara sua saída
A expressão compenetrada Não é treinada, escapa na respiração dos poros Entra, esconde, pinta o caos de nevoeiro Que meus olhos não mostram: Eu tenho o mundo dentro de mim E dentro dele, há outros tantos que só eu conheço Céus borrados por nuvens dançantes Cores que jorram Raios que invadem o sol Fogo que corta o céu Os astros orbitam meu peito e aceleram a circulação Dilatam pupilas e expandem brônquios defeituosos Pele que inflama o pêlo que arrepia Meus mundos confusos de heterogêneos tons Bagunceiros e desordenados Se arrumar, não me perco Se intervier, perde a paciência Perde a intimidade E fica aquela sensação: uma falta de não sei bem o quê Angustia sem nome Tentativas externas de ordenar As meninas dos meus olhos vestiram-se de pernas e friezas Escondendo o caos Preservando a bagunça Afastando-a das curiosas Desde então, durmo acompanhada Acordo só Mantenho-me melodiosamente desgrenhada Sou casa desordenada Minh
Ciclo Escatologia Continuidade Uniformidade Diferença programada Volta cronometrada Tá tudo lá, no teu mapa astral O ciclo e sua duração O erro e o encontro O perecível e o depósito incomum O triste, o belo e o feio O justo, o correto ao lado do pequeno Tudo o que tocas, transforma Muda a textura Grita teu nome no escuro Desperta pra sonhar no pesadelo que tornou-se o adormecer Transmuta do sólido ao líquido Da trama ao fio Da rigidez ao pó Mas tuas mãos permanecem tocando Dedos em campanário diante das mesmas aflições A mesma dificuldade O mesmo obstáculo Mas as peles sob as unhas são diferentes Os pelos não são os mesmos O sangue é outro, tal qual a circulação E até que percebas o óbvio e o assuma como exótico Não natural, posterior, anterior, primordial e originário Repetido e finalizante Cortante Interruptor Continuarás a tocar e transformar o que toca Mantendo igual, entretanto Passando café nos mesmos bules Retornando para as mesmas saídas f